quinta-feira, 9 de novembro de 2017

CARTA ABERTA À UNESCO EM DEFESA DA PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL E DOS FAZEDORES DE CULTURA ALIMENTAR E AGROECOLOGIA NO ENCONTRO MUNDIAL DAS CIDADES CRIATIVAS

 A conservação das práticas culturais alimentares e agroecológicas, somadas ao respeito à diversidade cultural e aos conhecimentos de mestras e mestres guardiões das culturas populares e tradicionais, se apresentam como salvaguarda da vida neste marco histórico da destruição dos ecossistemas e direitos. E nós – fazedores de cultura alimentar, produtores agroecológicos, cozinheiros, artistas populares, camponeses, pesquisadores, e representantes de organizações, coletivos e movimentos sociais, defensores dos direitos humanos, direitos ambientais, direitos à terra, à cidadania, à cidade, à cultura e soberania alimentar, à acessibilidade, às tecnologias e mídias digitais, à comunicação livre e comunitária, dos direitos de povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, contra os agrotóxicos e transgênicos – fazemos um apelo ao mundo e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) – entidade reunida na Cidade de Belém/PA, junto à Rede Mundial das Cidades Criativas – para que juntos possamos garantir e implementar as políticas públicas e ações integradas construídas com a participação da sociedade civil organizada e representada legitimamente por povos indígenas, povos tradicionais, povos de matriz africana, povos imigrantes, povos de fronteiras, povos periféricos e demais grupos culturais. Pois, vimos se multiplicar no país ações de exceção, de cerceamento e desqualificação da criatividade e largos esforços em negar direitos. E então perguntamos: “Por que nós – movimentos sociais e redes de pequenos agricultores, fazedores de cultura alimentar e agroecologia – fomos apartados da construção dessa reunião internacional das Cidades Criativas da Gastronomia, a ser realizada na Amazônia, se somos nós que alimentamos a Amazônia com mais de 70% da produção de alimentos desde os guardiões de sementes? Por quê? Até mesmo a Rede ODS Brasil – a qual integramos ou nos relacionamos para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU – teve sua participação negada? Quais os critérios de representação?” Ainda no primeiro semestre de 2017, ao tomarmos conhecimento do evento Encontro Mundial das Cidades Criativas – a ser promovido pela Prefeitura de Belém e UNESCO, de 07 a 11 de novembro – buscamos informações junto à Prefeitura, sem sucesso. De nossa parte, sempre nos disponibilizamos para o mais aberto diálogo e mobilização das redes. Fazer e apresentar nossas culturas e cultivares nos traz felicidade! Pelos noticiários, nos deparamos com impostas representatividades apartadas do fazer cultural. Recorremos à Convenção para a Proteção e Promoção das Salvaguardas das Expressões Culturais, que define "Interculturalidade" como a existência e interação equitativa de diversas culturas, assim como à possibilidade de geração de expressões culturais compartilhadas por meio do diálogo e respeito mútuo (Art. 8°). Preocupa-nos esta distância e a acentuada oposição com a Agenda 2030 e demais Protocolos da Organização das Nações Unidas e sua agência UNESCO. Estranha-nos este “esquecimento” durante um evento dessa magnitude, em um estado que sofre acelerada perda de seu patrimônio cultural e diversidade biológica, e figura entre os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH); onde a soberania alimentar, antes garantida pelo consumo dos produtos da floresta e da agricultura camponesa, hoje vê a biodiversidade se tornar monocultivo e sofre pela precoce morte de seus povos tradicionais invadidos por medidas compensatórias e o imperialismo do gosto industrial, entre outras questões que violam diretamente os Protocolos, Convenções e Tratados Internacionais. O extermínio da cultura alimentar é prenúncio da morte de um povo. Nem a Amazônia, nem o Brasil se alimentam das commodities suicidas que distribuem o recorde mundial de consumo de agrotóxicos desde 2009, concentrando terra e renda; bem como contribuindo para recordes de assassinatos de camponeses e mortes de ativistas, alarmantes índices de trabalho escravo e tráfico humano, biopirataria desenfreada, precarização da educação e dos serviços básicos, gentrificação, desterritorialização, e o avassalador preconceito ao alimento originário das roças e matas, em detrimento ao que o Hemisfério Norte descartou à América Latina. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), pela primeira vez na história, a atual e futura geração viverá menos que a anterior. Assusta-nos saber que a mortalidade infantil por doenças crônicas não transmissíveis como a obesidade, as doenças cardíacas e diabetes têm índices epidêmicos devido aos maus hábitos de consumo promovidos ferozmente pelos impérios agroalimentares. Vivemos em uma sociedade que produz sementes que não brotam, que criminaliza alimentos artesanais sadios, que flexibiliza leis sobre agrotóxicos e transgênicos, que provoca a contaminação do leite materno por exposição a venenos agrícolas banidos na Europa e subsidiados no Brasil. A valorização gastronômica seletiva e a subalternização do conhecimento ancestral carregam demasiado preconceito, pois muitas vezes seus guardiões são induzidos a acreditar que o que comem é “imundície”, “coisa do mato”, “fruta besta”... e quando chega a apropriação gastronômica para trocar patrimônio genético por “espelho”, o que se chamava “imundície” passa a ser biodiversidade na mão das corporações e seus garotos propagandas, para fazer Greenwashing, a lavagem verde do dinheiro. É preciso garantir também o direito à cidade, além do acesso aos espaços e equipamentos públicos, na autonomia de pensar e transformar o espaço urbano quanto local de diversidade, encontros e trocas. Lutamos contra a especulação imobiliária; lutamos pela valorização das culturas de periferias; pelo respeito à diversidade de povos na zona urbana; pela água, pela preservação do patrimônio e das áreas verdes. O Brasil viu nestes últimos anos emergir potentes movimentos em defesa da alimentação com importantes avanços, entre eles, o caminhar para a saída do Mapa da Fome, o Programas de Aquisição de Alimentos (PAA), o fortalecimento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), e do Colegiado Setorial de Cultura Alimentar - CNPC/MINC. Todos com destacadas lideranças femininas. Considerando que a Convenção Nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais entrou em vigor no Brasil em 25 de julho de 2003; Considerando que o Decreto Nº 6.040/2007, define os povos e comunidades tradicionais como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais; Considerando o Tratado Internacional dos Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura/FAO (TIRFAA), promulgado pelo Decreto N° 6.476/2008; Considerando que, atualmente, são estabelecidos diálogos intersetoriais com o CONSEA que reconhece a Cultura Alimentar como salvaguarda para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, com base na Lei Nº 11.346/2006; Considerando que a cultura alimentar passa a compor as metas nacionais 2010-2020 das Metas de Aichi (5-13) como salvaguarda para a proteção e promoção da sociobiodiversidade brasileira; e redução do impacto das mudanças climáticas; Considerando a Convenção da Salvaguarda para o Patrimônio Cultural Imaterial, Artigo 2º, parágrafo 2, sobre a particularidade da manifestação e sua definição; Deste modo, compreendemos que são fazedores de cultura alimentar, cozinheiras e cozinheiros tradicionais, agricultores tradicionais, construtores tradicionais, mestres de navegação, tecedoras, ceramistas e demais artesãos, pajés, griôs, mestres de saberes da terra, mestres de curas, guardiães de sementes, costureiras, carimbozeiros, mestres da cultura popular, e demais fazedores, assim como agricultores, cozinheiros, gastrônomos, culinaristas e nutricionistas em seus fazeres cotidianos e inovadores desde que relativos à cultura. Considerando os direitos, e que a cultura alimentar e a agroecologia são segmentos em exponencial crescimento econômico e avanços científicos; Reivindicamos garantias ao direito à consulta prévia, ampla e informada, pois Acordos Internacionais e Cooperações serão firmados e desconhecemos os teores. Propomos diálogo estreito e propositivo junto às autoridades competentes e secretarias; e a composição por movimentos e representações da sociedade civil organizada no Comitê Cidade Criativa; Reivindicamos políticas públicas e garantias de fomento compatíveis com a realidade local para imediata criação e viabilização operacional de comissões de salvaguarda do patrimônio cultural e bens associados; e de comissões para a salvaguarda das expressões culturais, conhecimento tradicional e patrimônio genético; Reivindicamos a implementação e operação das políticas públicas específicas para cultura alimentar, agroecologia e produção orgânica. Reivindicamos com base na apresentação da cultura originária marajoara representada oficialmente pelo Comitê da Cidade Criativa de Belém, em Denia/Espanha, a construção de protocolo para o banimento do uso de agrotóxicos e proteção da cultura alimentar na Área de Proteção Ambiental do Marajó (APA Marajó), com garantias de fomento e imediata operacionalização para salvaguardar os sítios arqueológicos marajoaras; Reivindicamos a descriminalização das produções artesanais culturais; Reivindicamos políticas para a mulher, respeitada como guardiã da cultura e sociobiodivesidade; Reivindicamos a evolução do insustentável modelo desenvolvimentista para a proposta de Bem Viver! Queremos o Direito Humano à Alimentação Adequada, o comércio justo, condições de trabalho, justiça social, democracia alimentar, e a conservação ambiental. Torcemos para que a Rede das Cidades Criativas da Gastronomia compreenda que para a cidade comer, o campo precisa plantar, a floresta precisa colher, a água estar limpa para o peixe nascer. Sem mestre, o Chef não cozinha. Sem guardiões e guardiãs de culturas populares e tradicionais, não há sementes, não há curas, nem nascentes. Cozinha Criativa é a que valoriza a Cultura Viva! Queremos nossas florestas, povos e juventudes vivas! Queremos nossos quintais alimentares! Queremos hortas urbanas e sementes crioulas! Queremos ver pousar sobre as antigas árvores os velhos pássaros semeadores, para alimentar campos e cidades de esperança, paz e cultura.
Belém, 06 de novembro de 2017.
Assinam esta carta: ANA Amazônia – Articulação Nacional de Agroecologia
Campanha Carimbó Patrimônio Cultural
Comitê Paraense da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida
Eliana Bogea – Advogada, Professora e Ativista Cultural
Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educação (FASE)
Fundo DEMA
Grupo para Consumo Agroecológico (GRUCA)
Instituto EcoVida
Laboratório Global de Justiça Socioambiental (LAJUSA / UFPA)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá
Rede ODS Brasil
Sítio Pajuçara
Slow Food Amazônia
Tarcísio Feitosa – Prêmio Goldman Prize
Tatiana Sá – Pesquisadora e Professora em Agroecologia
Huarley Mateus do Vale Monteiro - UERR-UFPA/PPGL

Nenhum comentário:

Postar um comentário