“Eu
canto este carimbó
Na
cantiga de um velho-menino
Maninho
eu não canto só
Canto
versos do velho Camilo”
(Huarley
Vale-Monteiro)
Fazem
três meses de tua partida. Não vemos mais teu sorriso moleque, tua alegria nas
piadas contadas. Também sentimos falta até de tua teimosia; mas cumpriste teu
papel. Deixastes para nós o legado de uma história não contada nos livros de
história que circulam nas escolas. Contaste a história de nossa gente através
da música, do ritmo, das toadas, de tuas anedotas e causos, como só você sabia
co/antar.
“velho-menino” é assim que compartilho
minha convivência contigo e é dessa maneira que lembramos de sua passagem entre
nós. E para que saibam de tua contribuição para as futuras gerações de nossa
comunidade, este texto abordará alguns acontecimentos de tua trajetória de
vida.
A
trajetória de ‘Tio Camilo’, como era conhecido na comunidade de Cristolândia,
confunde-se com a história da família Vale na região do Alto Rio Marapanim-Pa e
com a própria história do Carimbó neste município.
Aos
29 de dezembro de 1919 nasce Camilo Alves do Vale, filho de Joaquina Coelho e Manoel
Monteiro, produtores rurais, moradores da então comunidade do Sêco-Marapanim/Pa
que depois de um certo tempo veio a se chamar Cristolândia. Contou-me ele, que
ali viveu e iniciou, ainda na infância sua atividade artística. Pai de sete
(07) filhos: José Maria, Maria da Conceição, Alberto, Fernando, Maria do
Socorro, Haroldo e Raimundo Nonato Alves do Vale.
Quando
criança acompanhava os pais frequentadores do Carimbó da ‘Tia Tereza’, antigo
terreiro de carimbó de Cristolândia que reunia pessoas de diferentes
localidades para as festas em louvor a São Benedito. Cresceu vivenciando as batidas
de Carimbó das mãos Raimundo Gaia e Romão de Barros, o som da viola de Matias
do Vale e o milheiro tocado por Tio Pirico. Quando os tocadores do Carimbó da
Tia Tereza davam uma pausa, ele e as outras crianças pegavam os instrumentos e
brincavam de ser cantadores de Carimbó.
Assim
Camilo cresceu e seus colegas de infância assumiram, junto com ele, o autêntico
Carimbó de tambor de chão que experimentavam nas brincadeiras de crianças. Além
de Tio Camilo, que veio a se tornar o Mestre de Carimbó do terreiro da Tia
Tereza, também eram dessa época, os batedores de tambor, Raimundo Vale
(Raimundo Moquia), Antônio Vale (Saburete) e o violeiro João do Vale (João
Parú). Todos eles cresceram ouvindo e frequentando o Carimbó da Tia Tereza e,
graças a ela, e aos que com ela conviveram, o Carimbó permanece vivo em
Cristolândia.
Conforme
o que Camilo falava e as pessoas mais idosas da comunidade confirmam que
naquela época não havia instrumentos de sopro, os outros instrumentos eram
todos confeccionados artesanalmente pelos próprios músicos. Afirmam ainda que, naquela
época não havia conjuntos de carimbó, o que existia eram apenas tocadores e
cantadores de Carimbó que se reuniam para festejar e compartilhar suas alegrias
ou devoções. Assim, as músicas que surgiam retratavam as relações cotidianas do
convívio com a natureza, nas atividades de trabalho, nos desconsolos e
angústias da vida, tanto como nos gracejos das paixões que surgiam. E desse
convívio muitos namoros e posterior casamentos surgiam.
A
exemplo disso era o carimbó organizado por Tia Tereza. O idosos da comunidade,
assim como Tio Camilo contava, dizem que ele iniciava no mês de novembro,
quando os ensaios aconteciam. Levantava-se o mastro em louvor a São Benedito em
26 de Dezembro e durante dez dias o Carimbó acontecia sem parar; até que no dia
seis de janeiro era derrubado o mastro e encerrava-se o período de Carimbó. Apesar
da festa ganhar força a partir de novembro, Tia Tereza passava o ano todo se
organizando para a festa: criava boi, porcos, galinhas e patos, tudo para
servir de alimento para as pessoas durante as festas de carimbó do Santo Preto.
Com
o passar dos anos, em respeito a Tia Tereza, a festa só iniciava depois que ela
dançasse a primeira música. O ritual consistia da seguinte maneira: ela
acompanhava todos os preparativos sentada no seu banco no canto do salão,
quando já estava tudo pronto, os cantadores começavam a cantar a música feita
para ela. Ela, por sua vez, já sabendo do procedimento, pegava seu bastão, levantava-se
e começava a dança pelo salão convidando todos e todas para virem participar de
mais um ano de festejos. A música cantada para ela, bem retrata esse momento:
“Um
bando de porco saiu na praia
A
velha do cacete com a mão na saia
Com
a mão na saia.
Com
a mão na saia.
A
velha do cacete com a mão na saia.”
Tia
Tereza faleceu a mais de sessenta anos com 115 anos de idade, deixando uma
herança cultural importante para as novas gerações.
Grande
parte desse legado foi herdado por Camilo e, segundo o que ele me contou, sua produção
artística teve início aos dez anos de idade; mais precisamente em 1929, quando convidado
por Mestre Enoque do Vale, integrou o Cordão
de Pássaro ‘O Periquito’. De lá
pra cá não parou mais de compor e participar de brincadeiras de Bichos e
Pássaros. A exemplo disso são: O Tucunaré, A Tilápia, O Surubim, O Papagaio, O
Caranguejo e tantos outros que participou e ajudou a compor.
Além
dessas brincadeiras foi ele o idealizador e compositor das toadas do Boi-bumbá
Misterioso. Foi ainda o criador e Mestre do Conjunto de Carimbó ABC
(Cristolândia) e Beija-flôr (Jarandeua). Em 2010 ajudou a resgatar o Carimbó em
Cristolândia e junto com Huarley Mateus do Vale Monteiro, Manoel do Vale
Monteiro (Manduca), Vitalina do Vale Monteiro, Evandro do Vale Monteiro, Elóy
de Sousa (Loló), Cézar do Vale, Doriedsom Do Vale (Bodó), Leonardo Miranda
(Léo), Diego Vale e Jairo do Vale criaram o Grupo de Carimbó Tangará da Serra.
Deve
ser destacado que no mesmo ano de 2010 Mestre Camilo, Huarley Mateus do Vale,
Manduca do Vale, Heitor do Vale e Eloy de Souza reviveram A Folia de Santos
Reis que a mais de quarenta anos não se ouvia as ladainhas de Reis na
comunidade de Cristolândia. Graças a Mestre Camilo que guardava ainda na
memória a ladainha, isso tem sido repassado às crianças e todos os anos a Folia
de Reis tem aglomerado mais adeptos naquela comunidade.
É
fato que a contribuição de Mestre Camilo para a Cultura popular de Marapanim, e
não somente, é indiscutível, porém deve ser registrado que ele inicia sua
atuação como Cantador e Compositor de Carimbó em 1934, aos quinze anos de
idade. Sendo assim, foram mais de 80 (oitenta) anos cantando Carimbó e fazendo
a alegria de nossa gente. Além disso, era contador de histórias, causos e
piadas.
Mestre Camilo, companheiro e amigo próximo de
Mestre Lucindo, é mais um dos tantos e tantas que fizeram e fazem do Carimbó um
dos motivos de sua existência. Que conciliam a vida sofrida de produtor(a) rural,
pescador(a) e cantador(a) de Carimbó. E para que possamos contar as futuras
gerações como nossos avós cantavam o Carimbó faz-se necessário o justo
reconhecimento dele como um dos grandes nomes herdeiros do autentico Carimbó de
Raiz de Marapanim-Pa. Tio Camilo faleceu em 08 de maio de 2017.