COM
MILTON HATOUM EM/‘NA GARGANTA DO DIABO’
Msc. Huarley Mateus do Vale Monteiro
(Universidade Estadual de Roraima - UERR)
RESUMO
O que me traz para este momento é o livro de
crônicas de Milton Hatoum (Um solitário à espreita) lançada em 2013. Esta obra
reúne uma coletânea de textos publicados pelo autor em diversos periódicos
brasileiros. Lançada pela Editora Companhia das Letras, as temáticas vão desde
os experimentos vividos nos tormentosos anos da ditadura militar que acometeu a
nação brasileira; percorrendo por deslocamentos em outros espaços, que não
apenas o brasileiro; vagueando em um fluxo de memória que dão, aos poucos, significados
a denúncias, atrocidades e alegrias entre as personagens e suas mais diferentes
performances, digo performance no sentido de Benjamin (1996). A referida obra
foi alvo de reflexões, teórica e pedagógica conduzida por mim, no curso de
Letras, da Universidade Estadual de Roraima/UERR - Campus Rorainópolis -,
durante o segundo semestre de 2013. Como resultado desse relevante momento
surgiu este ensaio. Sendo sabedor que apesar da obra de Hatoum trazer enfoques
sobre a expressividade amazônica, penso que ela transgride o convencionalismo
regionalista, apontando para deslocamentos transfronteiriços, pontuando
relações culturais de um Brasil diverso, denuncias sociais de maneira
inteligente em uma técnica textual requintada. Neste sentido, trago para este espaço,
o texto que finaliza a obra (Na garganta do diabo). Abordo este, tendo por base
as reflexões de Marcos Reigota (2003), Leandro Guimarães (2009), Huarley
Monteiro (2013), Valdo Barcelos (2006), Hall (2006) e Néstor Canclini (2008).
Palavras-chave: interculturalidade,
deslocamentos, identidade, Milton Hatoum, crônicas.
RESUMEN
Lo
que me trae para este momento es el libro de crónicas de Milton Hatoum (Un
acecho solitario) lanzada en 2013. Esta obra reúne una colección de textos
publicada por el autor en diversos periódicos brasileños. Lanzada por la
Editorial Companhia das Letras, las
temáticas van desde los experimentos vividos en los tormentos años de dictadura
militar que afectó la nación brasileña; percudiendo por
desplazamiento en otros espacios, que no
apenas el brasileño; vagando en una secuencia de memoria que dan, a los pocos,
significados a denuncias, atrocidad y alegrías entre los personajes e sus mas
diferentes actuaciones, digo actuaciones en el sentido de Benjamin (1996). La
referida obra fue objetivo de reflexiones, teorías y pedagógica realizada por
mí, en el curso de Letras, de la Universidad Estatal de Roraima/UERR- Campus
Rorainópolis-, durante el segundo semestre de 2013. Como resultado de ese
relevante momento surgió este ensayo. Siendo sabedor que a pesar de la obra del
referido autor, traer enfoques sobre la expresividad amazónica, pienso que ella
transgrede el convencionalismo regionalista,
apuntando para desplazamientos transfronterizos, puntuando relaciones culturales de un Brasil diverso, denuncias
sociales de manera inteligente en una técnica textual requintada. En este
sentido, traigo para este espacio, el texto que finaliza la obra (En la
garganta del diablo). Abordo este, teniendo por base las reflexiones de Marcos
Reigota (2003), Leandro Guimarães (2009), Huarley Monteiro (2003), Valdo
Barcelos (2006), Hall (2006) y Néstor Canclini (2008).
Palabras-clave: interculturalidad, desplazamiento,
identidad, Milton Hatoum, crónicas.
INICIANDO A CAMINHADA
“Odeio
Carlos III e o Marquês de Pombal”, disse
uma voz ao meu lado. ‘Quando eles expulsaram os Jesuítas, destruíram um projeto
civilizador. Foi uma tragédia para todos nós.’
Enquanto o guia falava em espanhol, os turistas o
olhavam perplexos. [...]”
(MILTON HATOUM,
2013, p.279)
Quero inicialmente destacar que não são poucos os
comentários que mencionam a qualidade da obra de Milton Hatoum. O fragmento
acima citado é parte de uma das crônicas que compõem sua mais recente obra. Tal
citação inicia o texto, já demonstrando o viés histórico e reflexivo do autor.
No
entanto, antes de iniciar as observações que proponho para este momento, julgo
ser oportuno fazer uma breve apresentação sobre o autor. Milton Hatoum inicia
sua vida literária com o romance, Relato
de um certo Oriente (1989). Após isto, vem recebendo significativa
atenção, tanto da crítica especializada quanto de leitores mais atentos. Em
2000, com o lançamento de Dois irmãos
tornou-se, sem dúvida alguma, um dos escritores sempre presentes nas menções
feitas aos grandes autores da literatura contemporânea brasileira. Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008), acrescido a
estes a coletânea de contos intitulada Cidade
Ilhada (2009), fizeram com que ele permanecesse no foco de debate da
crítica e sendo bem aceito pelo público leitor.
Milton
Hatoum é desses poucos escritores brasileiros que retratam, através de um
discurso histórico, a dinâmica social e os experimentos vividos cotidianamente com
tanta perspicácia. Além disto, são raros os que, em tão curto espaço de
produção literária, possuem agudo teor crítico em suas obras. O reflexo desse
exercício tem lhe conduzido a receber relevantes premiações literárias e ser
merecedor de traduções em diferentes línguas.
Assim,
quando se comenta sobre ele, é possível perceber rapidamente que alguns
leitores se deparam como desconhecedores das produções deste autor; outros se
reconhecem no tom subjetivo que denota em suas narrativas. São colegas de
trabalho, pesquisadores e críticos; leitores que ratificam a qualidade textual produzida
por ele.
Mas, é bem verdade que sua produção literária,
apesar de trazer enfoques sobre a expressividade amazônica, transgride o
convencionalismo regionalista apontando para deslocamentos transfronteiriços,
pontuando relações culturais de um Brasil diverso, denuncias sociais de maneira
inteligente em uma técnica textual requintada.
É este
viés de entendimento que me trouxe a observar sua mais recente obra: uma
coletânea de crônicas publicada em diversos periódicos brasileiros que foi
lançada em meados de 2013 pela Editora Companhia das Letras. Assim, ela se
junta às suas outras obras, reafirmando a qualidade técnica do autor.
1. O VIÉS DE ENTENDIMENTO
Com
temáticas que vão desde os experimentos vividos durante os tormentosos anos da
ditadura militar que acometeu a nação brasileira; percorrendo por seus
deslocamentos pelos estados americanos, brasileiros e tantos outros espaços;
vagueando em um fluxo de memoria que dão, aos poucos, significados a denuncias,
atrocidades e alegrias entre as personagens em suas mais diferentes
performances, digo isto no sentido de Benjamin (1996).
Confesso
a vocês que quando soube do lançamento da obra fiquei no aguardo para poder
lê-la. Algumas semanas depois de ser lançada eu me encontrava em viagem ao
sudeste brasileiro e em meu retorno, enquanto aguardava o horário do voo, em um
dos frenéticos aeroportos que por lá existem, caminhava pelo saguão observando
as coisas, quase que sem rumo certo. Esses passeios em que os olhos percorrem
vitrines repletas de belas paisagens e iguarias do lugar, mas que dificilmente
nos demonstram as mazelas que ainda permanecem escondidas pelos discursos e
práticas “politicamente corretas”.
Na
ocasião me deparei com a obra que destoava em uma das prateleiras dessas
livrarias que existem nesses locais e que sempre tentam nos encantar com
espaços repletos de leituras que, supostamente, nos ensinariam: enriquecimento
rápido, técnicas e etiquetas, erotismos ou a notícia divulgado pelas mídias sobre
o último vestido usado por um/a artista famoso/a.
Adquiri a
obra. Desde então se tornou leitura constante. Sou sabedor de que ela
subdivide-se em partes que abordam específicas reflexões, bem como seu gênero é
específico; porém, deixo essas preocupações para outros leitores que, disto,
queiram fazer uso. O que me ocupo neste texto é a interculturalidade apontada
na referida obra. Com esta preocupação, a última crônica da coletânea, me
conduz a uma narrativa que descreve a presença de turistas na região ondes e
localizam as ruinas dos Setes Povos das Missões, estremo sul brasileiro.
Tal
crônica faz inferências a Guerra Guaranítica (GOLIN, 1997);
confronto de grande violência que, como tantos outros de nossa história -
oficial e oficiosa – brasileira são omitidos nos livros veiculados em nossas
escolas. Isso, presentifica-se no fragmento que abre este texto que menciona a
maneira resistente presentificada na fala de Yu Hu, personagem da narrativa, e
nos conduz a buscar mais detalhes desta questão.
Ao
que consta1, o confronto violento aconteceu entre o povo Guarani
contrários a soldados portugueses e espanhóis em função da demarcação da
fronteira que separaria as terras portuguesas das espanholas, na América
Latina. Isto eclodiu em função da assinatura do Tratado de Madri2,
mais precisamente no ano de 1750.
A
região tornou-se o marco divisório da tríplice fronteira entre Brasil, Uruguai
e Argentina. Este local era habitado pelo Povo Guarani que, com essa atitude,
teriam que definir sua nacionalidade e entregar suas terras aos países que
agora se constituíam enquanto Estado Nação.
Nesse
período, os jesuítas já atuavam nessa região e, alguns destes, foram grandes
aliados dos Guarani, pois viam naquele ato a agressão aos direito de tais
povos.
Devo
ressaltar que essa região foi local dos aldeamentos feitos para a catequização
dos sujeitos étnicos por parte dos Jesuítas (GOLIN,1997). Destaco ainda que, os
sete aldeias que foram formadas para esse fim são apenas a reorganização de
povos que, em momentos anteriores a 1687, foram destruídas pelo avanço dos
Bandeirantes em busca de minérios. São elas: São Francisco de Borja, São
Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Luiz
Gonzaga e Santo Ângelo Custodio. Como resultado desses aldeamentos surgiram
diversas cidades e em algumas delas, as ruínas que ficaram desse aldeamento
tornaram-se pontos turísticos.
É
sabido que, por volta de 1760, os resistentes foram praticamente exterminados
pelo exercito espanhol/argentino e português/brasileiro em um confronto que
perdurou por dois logos anos, marcado por esquartejamentos, estupro de mulheres
e massacre de crianças étnicas (QUEVEDO, 1996).
2. PARA ALÉM DA INFERÊNCIA
Para além
desta relevante inferência, denunciada na voz do personagem Yu Hu, talvez possa
ser alongada, mais ainda, a observação sobre o texto, tendo por referência o
fragmento a seguir, vejamos:
“Bebeu àgua do cantil e fez um gesto contrário com
a cabeça. Eu me refugiara na sombra de uma parede de pedras, mas Yu Hu não saiu
do sol. Era moreno, e seu rosto asiático podia ser também indígena.
‘Às vezes recitava poemas sobre a morte’, ele
prosseguiu. ‘Quem, diante da Garganta do Diabo, a um passo desse abismo cercado
de rochas e àgua, não pensa na morte? Eu dizia: Esse abismo sem fundo, esse
abismo quase infinito não nos remete ao nosso destino comum?’. Eles me olharam
com ar pensativo. Refletiram sobre minhas palavras, sobre a vida e seu avesso:
o silêncio eterno [...]”.
(HATOUM, 2013, p. 280)
É possível contextualizar o
fragmento com o que pensadores sobre questões da “pós-modernidade” - como
Marcos Reigota (2003) e Huarley Monteiro (2013) - afirmam sobre a relevância
dos escritos de Hatoum para se pensar a sociedade contemporânea. Apontam eles para
elementos da alteridade, deslocamentos, diversidade, paisagens em
transformação, famílias desintegradas. Narrativas denunciadoras de cotidianos,
por vezes trazidos à tona em fluxos de memórias, contextos favoráveis e
significativos para busca de entendimento de relações culturais no mundo
contemporâneo (HALL, 2006), (GUIMARÃES, 2009), (BARCELOS, 2006), (CANCLINI, 2008).
Para além destas reflexões, é importante
ser evidenciado ainda, apontamentos que nos conduzem a questões sobre
identidades. Vejamos o fragmento a seguir:
“Perguntei se era bilíngue.
Sem nenhum pedantismo, disse que poderia reverência
a lua em seis idiomas. O pai de José Yu Hu era um Chinês de Goa; uma brasileira
de Foz do Iguaçu, neta de índio.
‘Nasci a
poucos metros do rio Paraná’, ele disse. ‘Cresci na tríplice fronteira, ouvindo
o espanhol paraguaio e argentino, ouvindo o cantonês falado por meu pai e o
português materno. Essas três línguas não são menos familiares para mim do que
a paisagem de Foz, Puerto Iguazu e Ciudad del Este.”
(HATOUM, 2013, p.280)
É fato que reflexões sobre identidade
vêm sendo alvo de constantes discussões e debates entre pensadores das ciências
sociais. Neste sentido, tanto Hall (2006) quanto Canclini (1995), argumentam que
as relações contemporâneas são provocativas e puseram em evidência a
fragilidade de conceitos que antes norteavam o pensamento sociológico. Hoje,
esses entendimentos, já fragilizados, vieram a tona, trazendo para o centro dos
debates as encruzilhadas indenitárias que expuseram sujeitos em inter-relações
culturais, constituindo-se nas interfaces do mundo pós-moderno.
Sobre este
ponto, Hall (2013, p.09) afirma que “a
identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que
se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e
da incerteza”. Baseado nisso, pode ser visualizado o entendimento da
fragmentação da identidade do sujeito contemporâneo resultante das
transformações na dinâmica das sociedades.
Este sujeito da
pós-modernidade não possuiria uma identidade permanente e fixa, mas sim pautada
na heterogeneidade, dinamizada historicamente nas relações estabelecidas
socialmente, superando o pensamento unificador iluminista. Nesse entendimento,
o sujeito possuiria identidades em si que se articulariam em consonância com os
sistemas culturais em que ele está inserido. Penso que seja na tensão, no
descentramento, que este sujeito pós-moderno se constitui socialmente dinâmico.
CONSIDERAÇÃO,
APENAS CONSIDERAÇÕES...
Neste sentido, pensar a identidade
atualmente como única e heterogênea é perder de vista o processo de mudança
pelo qual a sociedade contemporânea vem passando, deslocadora das estruturas
sócias e apontando para instabilidades, dessa referência, nos grupos sociais, o
pertencimento enquanto busca e referência contemporânea.
Assim, a crônica nos conduz para
questões de identidade cultural no mundo contemporâneo. Assim, levanto alguns
questionamentos: para onde realmente apontaria o mundo dinâmico em que vivemos?
Que acontecimentos contribuíram para que nos encontrássemos nesta encruzilhada
indenitária? O que ainda nos é pertinente que apontariam nossos pertencimentos?
É possível que a fala de Yu Hu “... Hoje em dia os turistas fotografam
tudo, sem conhecer nada. Não querer ouvir histórias do lugar, nem a história do
lugar.” (HATOUM, 2013, p. 279) traduza essa ausência de vontade, não apenas
de querer ouvir a/as história/s do lugar, mas também de não querer ouvir o outro
e sua trajetória de vida. Isto talvez seja reflexo do silêncio ensurdecedor que
a indiferença causa entre as pessoas e que se naturalizou no mundo
contemporâneo. A fala do personagem Yu Hu traduz bem esta questão e aponta
ainda vozes anônimas que denunciam inquietudes comuns sobre questões de raça,
gênero, orientação sexual e opção religiosa.
Para além deste ponto, envolveriam ainda
a noção do que nos é pertinente. Talvez mais agravante que isto, seja o abismo³ que acomete as relações humanas,
onde as desesperanças acabam se tornando angústias comuns frente às relações de
poder sobre aquilo que nos é singular e que acabam sendo naturalizadas como
normais.
Notas
explicativas
REFERÊNCIAS
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