A conservação das práticas culturais alimentares e agroecológicas, somadas ao
respeito à diversidade cultural e aos conhecimentos de mestras e mestres guardiões das
culturas populares e tradicionais, se apresentam como salvaguarda da vida neste marco
histórico da destruição dos ecossistemas e direitos.
E nós – fazedores de cultura alimentar, produtores agroecológicos, cozinheiros,
artistas populares, camponeses, pesquisadores, e representantes de organizações, coletivos e
movimentos sociais, defensores dos direitos humanos, direitos ambientais, direitos à terra, à
cidadania, à cidade, à cultura e soberania alimentar, à acessibilidade, às tecnologias e mídias
digitais, à comunicação livre e comunitária, dos direitos de povos indígenas, quilombolas e
povos e comunidades tradicionais, contra os agrotóxicos e transgênicos – fazemos um apelo
ao mundo e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) – entidade reunida na Cidade de Belém/PA, junto à Rede Mundial das Cidades
Criativas – para que juntos possamos garantir e implementar as políticas públicas e ações
integradas construídas com a participação da sociedade civil organizada e representada
legitimamente por povos indígenas, povos tradicionais, povos de matriz africana, povos
imigrantes, povos de fronteiras, povos periféricos e demais grupos culturais.
Pois, vimos se multiplicar no país ações de exceção, de cerceamento e desqualificação
da criatividade e largos esforços em negar direitos. E então perguntamos: “Por que nós –
movimentos sociais e redes de pequenos agricultores, fazedores de cultura alimentar e
agroecologia – fomos apartados da construção dessa reunião internacional das Cidades
Criativas da Gastronomia, a ser realizada na Amazônia, se somos nós que alimentamos a
Amazônia com mais de 70% da produção de alimentos desde os guardiões de sementes? Por
quê? Até mesmo a Rede ODS Brasil – a qual integramos ou nos relacionamos para alcançar
os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU – teve sua participação negada? Quais
os critérios de representação?”
Ainda no primeiro semestre de 2017, ao tomarmos conhecimento do evento Encontro
Mundial das Cidades Criativas – a ser promovido pela Prefeitura de Belém e UNESCO, de 07
a 11 de novembro – buscamos informações junto à Prefeitura, sem sucesso. De nossa parte,
sempre nos disponibilizamos para o mais aberto diálogo e mobilização das redes. Fazer e
apresentar nossas culturas e cultivares nos traz felicidade!
Pelos noticiários, nos deparamos com impostas representatividades apartadas do fazer
cultural. Recorremos à Convenção para a Proteção e Promoção das Salvaguardas das
Expressões Culturais, que define "Interculturalidade" como a existência e interação equitativa
de diversas culturas, assim como à possibilidade de geração de expressões culturais
compartilhadas por meio do diálogo e respeito mútuo (Art. 8°).
Preocupa-nos esta distância e a acentuada oposição com a Agenda 2030 e demais
Protocolos da Organização das Nações Unidas e sua agência UNESCO.
Estranha-nos este “esquecimento” durante um evento dessa magnitude, em um estado
que sofre acelerada perda de seu patrimônio cultural e diversidade biológica, e figura entre os
piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH); onde a soberania alimentar, antes garantida
pelo consumo dos produtos da floresta e da agricultura camponesa, hoje vê a biodiversidade
se tornar monocultivo e sofre pela precoce morte de seus povos tradicionais invadidos por
medidas compensatórias e o imperialismo do gosto industrial, entre outras questões que violam
diretamente os Protocolos, Convenções e Tratados Internacionais.
O extermínio da cultura alimentar é prenúncio da morte de um povo. Nem a Amazônia,
nem o Brasil se alimentam das commodities suicidas que distribuem o recorde mundial de
consumo de agrotóxicos desde 2009, concentrando terra e renda; bem como contribuindo para
recordes de assassinatos de camponeses e mortes de ativistas, alarmantes índices de trabalho
escravo e tráfico humano, biopirataria desenfreada, precarização da educação e dos serviços
básicos, gentrificação, desterritorialização, e o avassalador preconceito ao alimento originário
das roças e matas, em detrimento ao que o Hemisfério Norte descartou à América Latina.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), pela primeira vez na história, a
atual e futura geração viverá menos que a anterior. Assusta-nos saber que a mortalidade
infantil por doenças crônicas não transmissíveis como a obesidade, as doenças cardíacas e
diabetes têm índices epidêmicos devido aos maus hábitos de consumo promovidos ferozmente
pelos impérios agroalimentares.
Vivemos em uma sociedade que produz sementes que não brotam, que criminaliza
alimentos artesanais sadios, que flexibiliza leis sobre agrotóxicos e transgênicos, que provoca
a contaminação do leite materno por exposição a venenos agrícolas banidos na Europa e
subsidiados no Brasil.
A valorização gastronômica seletiva e a subalternização do conhecimento ancestral
carregam demasiado preconceito, pois muitas vezes seus guardiões são induzidos a acreditar
que o que comem é “imundície”, “coisa do mato”, “fruta besta”... e quando chega a apropriação
gastronômica para trocar patrimônio genético por “espelho”, o que se chamava “imundície”
passa a ser biodiversidade na mão das corporações e seus garotos propagandas, para fazer
Greenwashing, a lavagem verde do dinheiro.
É preciso garantir também o direito à cidade, além do acesso aos espaços e
equipamentos públicos, na autonomia de pensar e transformar o espaço urbano quanto local
de diversidade, encontros e trocas. Lutamos contra a especulação imobiliária; lutamos pela
valorização das culturas de periferias; pelo respeito à diversidade de povos na zona urbana;
pela água, pela preservação do patrimônio e das áreas verdes.
O Brasil viu nestes últimos anos emergir potentes movimentos em defesa da
alimentação com importantes avanços, entre eles, o caminhar para a saída do Mapa da Fome,
o Programas de Aquisição de Alimentos (PAA), o fortalecimento do Conselho Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), e do Colegiado Setorial de Cultura Alimentar -
CNPC/MINC. Todos com destacadas lideranças femininas.
Considerando que a Convenção Nº 169, da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais entrou em vigor no Brasil em 25 de julho de 2003;
Considerando que o Decreto Nº 6.040/2007, define os povos e comunidades
tradicionais como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais;
Considerando o Tratado Internacional dos Recursos Fitogenéticos para a
Alimentação e Agricultura/FAO (TIRFAA), promulgado pelo Decreto N° 6.476/2008;
Considerando que, atualmente, são estabelecidos diálogos intersetoriais com o
CONSEA que reconhece a Cultura Alimentar como salvaguarda para Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional, com base na Lei Nº 11.346/2006;
Considerando que a cultura alimentar passa a compor as metas nacionais 2010-2020
das Metas de Aichi (5-13) como salvaguarda para a proteção e promoção da
sociobiodiversidade brasileira; e redução do impacto das mudanças climáticas;
Considerando a Convenção da Salvaguarda para o Patrimônio Cultural Imaterial,
Artigo 2º, parágrafo 2, sobre a particularidade da manifestação e sua definição;
Deste modo, compreendemos que são fazedores de cultura alimentar, cozinheiras e
cozinheiros tradicionais, agricultores tradicionais, construtores tradicionais, mestres de
navegação, tecedoras, ceramistas e demais artesãos, pajés, griôs, mestres de saberes da
terra, mestres de curas, guardiães de sementes, costureiras, carimbozeiros, mestres da
cultura popular, e demais fazedores, assim como agricultores, cozinheiros, gastrônomos,
culinaristas e nutricionistas em seus fazeres cotidianos e inovadores desde que relativos à
cultura.
Considerando os direitos, e que a cultura alimentar e a agroecologia são segmentos em
exponencial crescimento econômico e avanços científicos;
Reivindicamos garantias ao direito à consulta prévia, ampla e informada, pois Acordos
Internacionais e Cooperações serão firmados e desconhecemos os teores.
Propomos diálogo estreito e propositivo junto às autoridades competentes e secretarias;
e a composição por movimentos e representações da sociedade civil organizada no Comitê
Cidade Criativa;
Reivindicamos políticas públicas e garantias de fomento compatíveis com a realidade
local para imediata criação e viabilização operacional de comissões de salvaguarda do
patrimônio cultural e bens associados; e de comissões para a salvaguarda das expressões
culturais, conhecimento tradicional e patrimônio genético;
Reivindicamos a implementação e operação das políticas públicas específicas para
cultura alimentar, agroecologia e produção orgânica.
Reivindicamos com base na apresentação da cultura originária marajoara representada
oficialmente pelo Comitê da Cidade Criativa de Belém, em Denia/Espanha, a construção de
protocolo para o banimento do uso de agrotóxicos e proteção da cultura alimentar na Área de
Proteção Ambiental do Marajó (APA Marajó), com garantias de fomento e imediata
operacionalização para salvaguardar os sítios arqueológicos marajoaras;
Reivindicamos a descriminalização das produções artesanais culturais;
Reivindicamos políticas para a mulher, respeitada como guardiã da cultura e
sociobiodivesidade;
Reivindicamos a evolução do insustentável modelo desenvolvimentista para a proposta
de Bem Viver!
Queremos o Direito Humano à Alimentação Adequada, o comércio justo, condições de
trabalho, justiça social, democracia alimentar, e a conservação ambiental.
Torcemos para que a Rede das Cidades Criativas da Gastronomia compreenda que
para a cidade comer, o campo precisa plantar, a floresta precisa colher, a água estar limpa
para o peixe nascer. Sem mestre, o Chef não cozinha. Sem guardiões e guardiãs de culturas
populares e tradicionais, não há sementes, não há curas, nem nascentes. Cozinha Criativa é
a que valoriza a Cultura Viva!
Queremos nossas florestas, povos e juventudes vivas! Queremos nossos quintais
alimentares! Queremos hortas urbanas e sementes crioulas!
Queremos ver pousar sobre as antigas árvores os velhos pássaros semeadores, para
alimentar campos e cidades de esperança, paz e cultura.
Belém, 06 de novembro de 2017.
Assinam esta carta:
ANA Amazônia – Articulação Nacional de Agroecologia
Campanha Carimbó Patrimônio Cultural
Comitê Paraense da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida
Eliana Bogea – Advogada, Professora e Ativista Cultural
Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educação (FASE)
Fundo DEMA
Grupo para Consumo Agroecológico (GRUCA)
Instituto EcoVida
Laboratório Global de Justiça Socioambiental (LAJUSA / UFPA)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá
Rede ODS Brasil
Sítio Pajuçara
Slow Food Amazônia
Tarcísio Feitosa – Prêmio Goldman Prize
Tatiana Sá – Pesquisadora e Professora em Agroecologia
Huarley Mateus do Vale Monteiro - UERR-UFPA/PPGL